A JANELA, O MURO E O
VARAL DE UM ARAME SÓ
Sem cortinas, a velha e emperrada janela pintada com tinta cinza e vidros sujos, mais parece uma abertura para lugar algum. Por ela, o que se vê é apenas um muro alto, erguido com tijolos irregulares, emendas malfeitas e caiado com um branco de dar dó. Entre o muro e a janela, em plano horizontal desnivelado, passa um arame de varal onde nunca se vê coisa alguma dependurada.
Janela, varal de um arame só e um muro alto. Esta é a visão que ele tem na maior parte do dia. De costas para o mundo, postado frente à sua velha e suja máquina de escrever, ele pensa e escreve. Muito mais pensa do que escreve. Dedilha sua sofrida máquina com uma força desnecessária, completa uma frase, debruça os cotovelos sobre a mesma sofrida máquina, cruza os dedos, apoia o queixo nas mãos dadas e fita, ora o muro alto, o varal de um arame só ou a janela pintada e suja de cinza. É ali que ele se inspira, viaja, sonha, sofre e pensa.
É ali, tendo como cenário o muro alto, o varal de um arame só e a janela pintada e suja de cinza, que ele passa a maior parte de seu tempo útil. Catando teclas e se inspirando em seu cenário particular, ele critica muito mais do que elogia, compra suas brigas, relata o que quer e o que não quer, se empolga, lamenta, dá o dever por cumprido e leva a vida.
Noites e mais noites perdidas, outras ganhas, foi ali que ele se tomou um profissional conhecido, respeitado, invejado, atacado, esculhambado, festejado, odiado e querido. Anos e mais anos fazendo jornal de interior, defendendo a cidadania, erguendo a bandeira do município. Cem por cento idealista e nada de exemplo empresarial. Vende espaços, mas não troca palavras por dinheiro. Sempre fazendo jornal com alma, com compromisso de seriedade e ética, por mais que isso lhe custe um misto de angústia e medo, diante do desconhecido futuro. Mas não havia como mudar. Aquela tarefa era sua cachaça, sua empolgação e sua própria vida.
Agora ele está lá, ou melhor, continua lá. Cotovelos apoiados sobre a sofrida máquina, dedos cruzados e as mãos dadas servindo de apoio ao queixo. Olhar perdido na visão de sempre: um muro alto, um varal de um arame só e a janela pintada e suja de cinza. Mas ele não vê o muro, nem o varal e muito menos a janela. Seu idealismo faz água e a bandeira do município está a meio pau. A defesa da cidadania não tem mais o defensor empolgado e a tarefa lhe pesa os ombros. Não quer mais comprar brigas e dispensa notoriedade. Quer mais é ser apenas um bom profissional nos bastidores da vida.
Mesmo assim, ele permanece lá, imóvel e segurando o queixo com as mãos dadas, dedos cruzados e cotovelos sobre a máquina de escrever. Percebe-se claramente que ele pensa, distante, mas pensa. Seu semblante está diferente, sereno, talvez em paz. Parece feliz. Ou triste. Ou feliz-triste, se isso existe.
Está claro. Há um muro alto, um varal de um arame só e uma janela pintada e suja de cinza. Seu rosto contrai os músculos e a pele cansada não sente a lágrima fria descendo sobre a face. Já não se percebe se há felicidade, tristeza, ou as duas coisas juntas. Ele se irrita, descruza os dedos, separa as mãos, retrai os cotovelos que se apoiam na máquina de escrever, fecha a janela pintada e suja de cinza e desaparecem o varal de um arame só e o muro alto.
Ele apaga a luz e vai para casa dormir, esperando que o tempo passe mais depressa e o novo dia, na manhã seguinte, revigore seu coração e aqueça sua alma.
(Crônica escrita no início dos anos 90, pelo jornalista Márcio Magno Passos)
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